sexta-feira, 2 de abril de 2010

...diários do fim de mundo.



O título, se é nossa denúncia a História fica desinteressante, se é sua dúvida ela é sua cobiça, atiçamos sua curiosidade com um frase inicial que faz você leitor se questionar o que vem pela frente.

Mas então as novidades não são mais esperadas.
Todo mundo hoje se refere a certas localidades de tal forma "era um fim de mundo, tchê", "noss, lá n'aquele fim de mundo". Mas nosso ponto de referência aqui não era somente tratado assim. Ela carrega consigo um dos espectros de renegação bíblicos"lááá onde Judá perdio as botas"...
Um gravador italiano, portátil (para a época), me faz companhia. Solitário? Um homem que busca a História não se consome pela solidão durante muito tempo, o mundo dos vivos se liga então ao mundo dos mortos e o Hoje se torna constituído pelo Ontem, não como o encontro de Alfa e Ômega, de A e Z, pois é possível que nessa linha do tempo estejamos ainda no meio de qualquer alfabeto. A casa era humilde, o coração era humildade, factual foi aquele encontro, como qualquer outro, passado e presente. De um lado: Sapato italiano, Palitó liso, Gravata; Do outro: Chinelo de dedo, bolso furado, camisa nada abotoada. Velho e novo se encontram,
quando a fita começa a rodar tudo que foi perdido se encontra como um nó entre dois bartantes...
Uma cadeira furada, mal estofada de palha me é oferecida e diante de mim mais um personagem da minha História... aquilo que não havia vivido, poderia aqui escrever. Pois que vejo aí duas formas de História, vivida e escrita. A minha primeira lição naquele momento não foi quem foi o pioneiro da cidade ou o primeiro prefeito ou o maior bugreiro matador de índios da região, mas sim, que havia uma História que ainda não fora contada. O desafio.

87 anos, Analfabeto, viúvo, dois filhos.
Depoimento de Nhô Virgílio,
Clevelândia, 16 de março de 1964.
Poderia continuar descrevendo aquele homem em couro e osso, apenas dois dentes na boca... Poderia tentar contar o número de rugas que corriam naquele rosto amorenado, tanto do sol quanto da raça: Caboclo. Tá poderia dizer etnia, afim de agradar qualquer antropólogo. Entretanto, cito aqui enquanto raça pois é dessa forma que o povo aqui se trata - e se vocês acham que eles são ignorantes por serem pouco científicos, pois bem, me incluam no mesmo grupo.
Virgílio descrevia palmo a palmo o cotidiano da vida na serraria no ano de 1900. Sentia aquele momento como um retorno, como uma pessoa se rejuvenecendo a minha frente, rememorando o esquecido, demolindo prédios e colocando em seu lugar palhoças, um vazio urbano cercado de carroças, nada de caminhões e carros... O chimarrão era oferecido naquela soleira de madeira duma casa caindo os pedaços, uma das frestas do lado da janela possibilitava que o gato ali atravessasse sem precisar passar pela porta. A moradia, assim como a vida era algo marcado pelo tempo ...

"Portanto, não tamo prosiando de qualqué feita em qualqué lugá...
E óia que pra sei-exato é capaiz desse tar de Judá ter passado praqui e tê feito arrrguma barbariedade das dele presses lado do Paranazão. Piazão do céo, cada coisa, o dia que cheguei em Parmas não dá pá esquece. Priguntei pum caboco: 'onde que é Bella Vista (antiga Clevelândia)?', o caboco rispundeu: 'é pra lááá onde Judá perdio as bota', e aponto. Quando ele falo aquilo, imaginei que ia tê que andá um par de metro, tipo uns 30 quiômetro a pé, pense só, eu morto, acabado de chegá de Antoninha".

(...)

"Nããã, o trabaio era cumpricado pra nóis, ocê não guentava nem a pau. As carroçona de pinheiro chegava, nóis tinha que descarrega, descasca os pinhero. Um de 30 metro, tu tinha que corta em umas 6 parte, dai pense... Depois disso, tinha que pega cada parte e fazê as madera pras casa. E tudo isso cuma serra que não facilitava muito quando tava mar-afiada, nóis chorava de tanto trabaiá, minhas arma do céu. Tinha um chefe que comia pão com salame e via nóis às veiz fica o dia sem café, armoço, um dia ele foi num miaral ali perto do colégio aqui embaxo, foi o suficiente pra mim ih lá comê um metade do sanguique e joga otra parte pos cachorro. Voltei po serviço dando um migué, o home fazia os cachorro voá piazão, era um italiano, era só 'pooorco dio, guaipeca fiadaputa, que cazzo'. Eu e os piá se matava de ri, ele começo a me oia desconfiado, a partir daquele dia não farto armoço".

(...)

.
E eis que esse nosso personagem citado é fatídico para essa data. O dia da semana constava que era sexta-feira, Sexta-feira Santa da paxão, pra ser mais preciso. Nada de trabaio na cerraria, nada de lavoro na horta nem nas prantação, a rua deserta, só tinha movimiento quando passava as muié cum véu preto pra ir na vigília da capelinha de madeira na ilha de selvagem de Bella Vista de Palmas, em volta dela não se via muita coisa, se oiássemos pô chão era só um barral resultante de uma semana de chuvas fora de época, nada a vê chovê naqueles tempo, parecia coisa incomendada do cão.
E as strada virava nisso, barro sobre barro, carroça nem pensar, cavalo era capaiz de atolá nas valeta.


um sítio cercado em Lageado Guedes, Palmas-PR, 15 de março de 1964.

O papel amarelado não revelava dia, mas não tinha como omitir mês e ano. Ao fundo da cômoda Provençal em cedro inglês, encontro um caderno, tipo uma agenda, pra ser mais preciso, uma agenda de traballho da Cerraria que era comandada pelo falecido pai que pouco hoje me recordo, aliás pra ser ainda mais exato, mais sincero pouco sei dele, de resto porque nunca me interessei em saber. Saber, saber, o que não sei era o motivo pelo qual tocava aquela capa dura com letras talhadas que diziam "SERRARIA BONIFFÁCIO". Devem ter sido cortadas dedo a dedo com uma faca de briga, uma que vivia na cinta da bombacha que o velho usava para ir nos bailes sem ela, dependurada num cabide ao lado da cama de casal de minha mãe. A velha havia lá deixado do jeito que o seu homem deixou.

Linha a linha, o traço escrachado, mal feito, quase indecifrável, escrito pela mão calejada daquele velho nem se assemelhava a um caderno meu de faculdade. Um dos dias não registrava contas, não tinha números... só havia ali um texto redigido, deboxando e ironizando o cotidiano da cidade. A emoção foi ainda maior e nem eu sabia porque, os garranchos me faziam

contava um pouco do cotidiano daquela cidade, mas não era o suficiente, a não ser para atiçar minha curiosidade e procurar saber um pouco mais dos ocorridos entre os campos e matas que se escondem no nosso amado, hospitaleiro e progressista Estado. O gravador italiano Geloso (1952) do falecido pai tem serventia para esse empenho,




relato de Nhô Virgílio
abril, 1900.




uma Herança...
Tranqueiras, velharias, indefiníveis para mim naquele instante. Falecia minha mãe. A velha morta da geada e sepultada ontem no campo sagrado municipal havia me deixado um rancho de 2 alqueires e meio, nada muito útil para um economista graduado na Federal do Paraná e recém-ingressante na bolsa de São Paulo. A prosperidade da soja me fazia promissor, ontem minha chegada era esperada na capela, o ônibus quase tomba num buraco da rua onde passei minha infância, nem lembro de nada agora somente penso em voltar, nem sei porque vim, a não pelo fato de ser o único filho vivo, aquela condição naquele banco duro me irritou tanto que me traumatizei e por isso decidi passar mais uma noite no rancho

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