segunda-feira, 9 de abril de 2012

A última dos Taquarianos: história da gente que nasceu no mato e no mato mora

Numa propriedade da Linha Farroupilha, em Beltrão, o tempo passa numa intensidade diferente dos centros urbanos. Não é o tempo ditado pelos apitos das fábricas, nem aquele definido pelo relógio. Mas sim o regido pela natureza, mãe e madrasta de dona Piedade Oliveira, uma distinta senhora que tendo vivido suas 60 primaveras, ainda tem por costume acordar quando o sol nasce e dormir assim que ele se põe.

Dona Piedade talvez nunca tenha escutado aquela música do João Lopes que diz que “a gente que nasceu no mato no mato tem que morar”; mas é a personificação da letra do “Bicho do Paraná”. Esta senhora conserva ainda os últimos resquícios da vida cabocla, andando descalça pela casa de chão batido, guardando a Semana Santa e produzindo somente “pro gasto”. Ela é a única remanescente dos Taquarianos que ainda cultiva a secular cultura da gente do sertão sudoestino, um habitante intermediário entre o “indígena selvagem” e o “colono civilizado”, segundo as interpretações de gente entendida no assunto.


O pai de dona Piedade, seo José, veio do município de Taquara (RS) em fins da década de 40. Seu local de origem justifica o pseudônimo pela qual a família ficou conhecida por estas paragens: eram eles os Taquarianos. O patriarca José faleceu há pouco mais de um mês, aos 88 anos, acometido por um câncer de boca.

Agora quem cuida da propriedade é somente dona Piedade, divorciada e que não possui filhos. Apesar dos 28 alqueires de terra que pertencem à família, a ajuda dos irmãos que residem próximo ela dispensa. “Esses matão tudo ali é nosso, essa roça tudo é nossa”, diz, apontando pro mato e algumas plantações.

Segundo contou em roda do fogão à lenha numa manhã em que o Sol amenizava o frio, chegou a estudar e ser parcialmente alfabetizada. Naquele dia acordou às sete da manhã para cumprir com seu ofício sertanejo: cuidar de alguma parte de terra e poucas cabeças de gado que ainda mantém para utilizar o leite e depois a carne. “Sempre foi atim (assim) [nossa vida]; desde os tinco (cinco) ano o pai levava a gente pa roça”, afirma a senhorinha que não nega serviço, apesar das dores nas pernas e de ter perdido o pai, seu companheiro de lida.

A residência fica num local que recompensa o acesso dificultado: um pequeno vale cercado de matas, paisagem que tem por trilha sonora o cantar dos pássaros e dos galos do terreiro. Luz elétrica é coisa que existe há pouco tempo, e só há uma lâmpada na casa. À cidade ela vem vez por mês receber o aposento e comprar alguns mantimentos que não produz.

O modo de falar é bastante próprio, seja pelos termos utilizados quanto pelo curioso sotaque. Assim como o pai, dona Piedade troca o “c” e “qu” pelo “t”. Não foi possível, porém, conhecer outra riqueza cultural que a família preservava: a planta chamada dagné, mas que “já tá se acabando”. Uma semente através da qual era possível fazer uma bebida que em muito se assemelha ao café, tanto no gosto como na aparência. “Vai ficando muito sofrida a terra, vai se acabando as coisa, aqui é bastante enxada a terra”, justifica dona Piedade.

Semana Santa ainda é guardada com pouco trabalho e muito silêncio
Pela casa, não faltam imagens de santos, nem quadros e nem santinhos. A religiosidade é característica implícita à vida cabocla de dona Piedade. Devota de todos os santos – pois, como afirma, não faz distinção entre eles – guarda a Semana Santa com pouco trabalho e muito silêncio.

Dom Carlos Eduardo Sabóia de Melo, o primeiro bispo da diocese de Palmas-FB, quando fazia suas incursões pelo sertão sudoestino no lombo de mula, descreveu que a “única classe de gente cuja vida externa se pode comparar em muitos pontos com a do Nosso Seráfico Pai é a do caboclo”.
E o clérigo escreveu mais: “há qualquer cousa no sertanejo que o colono não possui, menos ainda o citadino, e nem se encontra nos operários, e que avizinha o caboclo do espírito franciscano”.

Os escritos do finado bispo datam da década de 40, mas na Linha Farroupilha ainda são atuais, pelo menos na simples casa da dona Piedade, que tem Deus por companhia e o Sol por guardião. É um patrimônio cultural imaterial não declarado pelas autoridades. Também nem precisa, já que lá o tempo – e as pessoas – é determinado pelas leis da Natureza, e não dos homens.

PS: Acompanharam a visita o Bira (do Paraná Blues) e o Ademar Garcia (da Secretaria de Agricultura).

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