quinta-feira, 8 de abril de 2010

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Papéis amarelados, pessoas falando, música caipira na rádio AM, filmes do Mazzaroppi, fotografias rasgadas, carreiros no meio do mato... Ambientes cruzados, fontes cruzadas, criando a História. Relatos, elementos da memória, conspiram e recriam a História como uma peça de teatro, o teatro da vida, encenando personagens no mesmo enredo, trajados, cada um assumindo seu papel e vivendo segundo tal. Pessoas diferentes de mim, de você leitor, mas que quando se encontram conosco procuram reafirmar ainda mais sua identidade. Serreiros, pistoleiros, carroceiros, bandidos, pedreiros, jagunços, padres, ladrões, policiais, nós-cegos, coronéis, vilões...

Também serei um desses personagens.
Historiador. É assim que definem aquele que aqui escreve. Mas ainda me refiro a outros fatos, aqueles não documentos, vividos mas nunca registrados. Abandonados no tempo, perante mim, não seriam nada se fosse cientista, se fosse mais um dos intelectuais arrogantes que frequentaram comigo os corredores daquela Universidade e se blindavam nos mitos por si criados, os mitos do cientificismo, do academicismo forma que deformava a sociedade e a condicionava sempre como passiva a suas teorias que os promulgavam como superiores a experiência social. Mas isso, aqui está apresentado de outra forma.

Viver a História. Em algum momento, andando pelas ruas,
especialmente por uma praça, pude obter a satisfação que somente o ócio pode nos oferecer. Era uma tarde de primavera, floriam as azaleias que se enroscavam em uma armação de metal, pardais bicavam os ladrilhos em busca de migalhas, senhores jogavam baralho sobre um tabuleiro entre dois bancos, os taxistas secavam seus carros esperando os clientes que não viriam, o Café estava fechado, o picolezeiro vendia sorvetes para as crianças no parquinho, era domingo. O sino da Matriz começava a badalar e o historiador que procurava estar ausente naquele momento percebia todo o imaginário bucólico de uma cidade de interior.

O descanso confortável num dos bancos da praça foi interrompido. Um nome célebre talhado abaixo da representação de uma figura humana se apresenta naquele ambiente, um mito da História do Brasil aparecia entre os ipês roxos que floreavam naquela estação. Mais um, mais um entre todas as praças. Um centro urbano nada conturbado, um final de semana sem buzinaços ou desavenças entre os motoristas que por ali passavam. Um Largo que diferente dos espaços públicos em grandes cidades, não revelava sentimentos de medo com o mundo urbano. A vida urbana ali significava proteção, segurança, algo raro. Ao sul do sol poente, abaixo do Iguaçu se revelava mais uma cidade da região sudoeste do Paraná.

Entre método e escrita, todo processo de conhecimento se completa entre os olhos, a cabeça e o punho de quem escreve se tornam presente. Ler, e eis que a observação coloca a História além do papel, além dos documentos escritos, esse verbo transitivo direto proporciona a interpretação não somente do que é cômodo, mas também da realidade social; Escrever, o exercício que acaba materializando o vivido em caracteres, em linguagem, é sobretudo o desafio do autor em se demonstrar enquanto sujeito, sua imaginação acaba exibindo seus significados.


. E eis que esse nosso personagem citado é fatídico para essa data. O dia da semana constava que era sexta-feira, Sexta-feira Santa da paxão, pra ser mais preciso. Nada de trabaio na cerraria, nada de lavoro na horta nem nas prantação, a rua deserta, só tinha movimiento quando passava as muié cum véu preto pra ir na vigília da capelinha de madeira na ilha de selvagem de Bella Vista de Palmas, em volta dela não se via muita coisa, se oiássemos pô chão era só um barral resultante de uma semana de chuvas fora de época, nada a vê chovê naqueles tempo, parecia coisa incomendada do cão.

E as strada virava nisso, barro sobre barro, carroça nem pensar, cavalo era capaiz de atolá nas valeta.


um sítio cercado em Lageado Guedes, Palmas-PR, 15 de março de 1964.

O papel amarelado não revelava dia, mas não tinha como omitir mês e ano. Ao fundo da cômoda Provençal em cedro inglês, encontro um caderno, tipo uma agenda, pra ser mais preciso, uma agenda de traballho da Cerraria que era comandada pelo falecido pai que pouco hoje me recordo, aliás pra ser ainda mais exato, mais sincero pouco sei dele, de resto porque nunca me interessei em saber. Saber, saber, o que não sei era o motivo pelo qual tocava aquela capa dura com letras talhadas que diziam "SERRARIA BONIFFÁCIO". Devem ter sido cortadas dedo a dedo com uma faca de briga, uma que vivia na cinta da bombacha que o velho usava para ir nos bailes sem ela, dependurada num cabide ao lado da cama de casal de minha mãe. A velha havia lá deixado do jeito que o seu homem deixou.

Um comentário:

  1. Porra, esse ficou muito bom!
    Parabéns rapaz, está se aperfeiçoando cada vez mais na arte de transmitir sentimentos. Não basta escrever, há que sentir e fazer sentir.
    Abraços!

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