domingo, 28 de agosto de 2011

A família sagrada do sertão.


Fazenda São Francisco de Sales (atual Mariópolis), às margens do Rio Veado, 1947.

Como o sopro da morte ou além dela, a espera de meu ressurgimento, aquela manhã era cortada pelo cantar do galo e pelo caboclo que acordava cedo e ia até a roça com uma enxada remexer o adubo pra brotar o milho. Uma garoinha casava com o sol nascente e fazia daquela paisagem uma verdadeira pintura numa aquarela chorosa do Sertão do Paraná.

Os porcos cachaços (machos) grunhiam no terreiro comendo abóboras e morangas, a sua esposa acendia o fogão a lenha improvisada e o seu piazinho debulhava um milho para as galinhas carijós que ciscavam em volta da casa.

O cotidiano se mostrava a única opção, a não ser quando rolava um bailão nos taquarais na comemoração do Espírito Santo, logo depois da missa. Se pudéssemos resumir a História desses caboclos no Sertão do Paraná seria necessária apenas uma palavra: silêncio.

Roceiros e safristas cuidavam a horta, sua fonte de alimentação, garantia da economia de subsistência ou desenvolvendo roças de milho. Mateiros e sertanistas trabalharam na lida com animais silvestres como porcos-do-mato, onças e tatus extraindo suas peles e usufruindo inclusive de suas carnes. Religiosos e devotos, promoviam um culto próprio em contato com a natureza, dela extraíam ervas para fazer chá e desempenhar o papel da medicina popular na região. Posseiros e imobiliários, comercializaram por um baixo preço suas terras e não receberam nenhuma documentação do governo por terem administrado essas terras.

Penso enquanto as linhas se tecem numa ruptura. Os seres silenciosos e sossegados do mato não puderam escrever sua própria versão na História, portanto, durante muito tempo ficamos com a versão dos vencedores, daqueles que vieram depois, os gringos.

Interrompido em sua travessia o caboclo, seu Nerso, foi chamado por um homem que estava sobre uma carroça vindo do norte Rio Grande, queria ali se estabelecer, comprar uma terra, montar seu rincão sobre o que as autoridades diziam estar “desabitado”. A troca foi feita na hora, a carroça foi trocado pelos 120 alqueires que o caboclo possuía, até o fim da tarde a família de seu Nerso foi até a bodega mais próxima e assinou uma papel onde estava desistindo das terras onde viveu seus 40 e poucos anos. Naquela época, o sudoeste não possuía cartórios, logo quem tinha toda autoridade na colônia era o bodegueiro, o fio do bigode valia a palavra desse homem que ficava de atrás do balcão espreitando todas as negociações.

No outro dia, o gringo Tarturino chega na bodega se “gavolando” de ter “logrado” o caboclo, ou seja, se achando porque fez um grande negócio porco enquanto ia se turbinando de uma pinga de mentruz com alho:


-Finquei mesmo, o 'caboco' teve que sair se peidando sei lá pra onde, fui mandado aqui pelas autoridades da capital, agora eles me mandaram fazer uma roça de 'mio' (milho) e criar uns porcos. Sim sim, agora os grandes de São Paulo vão depender do nosso milho, eu tô aqui e não é do nada, 'temo' que 'fincá' a patrola, derrubar esses mato de araucária e fincar 'mio' aí pra fazer dinheiro. Soquei nele uma carroça 'véia' que eu tinha, com as roda tudo entrevada, ele aceitou na hora. Tô indo buscar outra que meu mano fez pra mim em União da Vitória.


Alguns dias depois, na viagem, dito e feito, aconteceu a presepada, o caboclo se estrepou na estrada quase chegando em Villa Nova (atual Pato Branco), descendo um barranco liso, a roda tastaviou (quebrou no meio), no tranco logo derrubou seu guri pra baixo dos cavalos que se assustaram e pisotearam seu frágil corpo. A tristeza tomou conta do casal que logo teve de levar o corpo do seu primogênito de 6 anos para ser enterrado num campo santo na vila ali próxima.

O leitor atento na lida e na peleia do andamento da História logo deixa de lado um questionamento interessante. Por que os caboclos vendiam aos gringos suas terras a tão baixo preço?

O brique (troca) se justificava de forma simples, os caboclos viviam há décadas ali, mas nunca ganhavam do governo qualquer escritura, o território era considerado “desabitado”, por isso também chamado de Sertão, logo o governo ignorava a existência de qualquer povoamento indígena ou caboclo na região simplesmente por outro motivo quantitativo.

A grande população cabocla do sudoeste não produzia renda, plantava roças de milho e criava porcos, mas sem almejar lucro, sem derrubar uma grande faixa de matas, sem fazer queimadas... Logo, a ausência de cobiça nos olhos serenos do caboclo, seus pés descalços, sua mão calejada segurando o mate eram detalhes insignificantes para os políticos capitalistas que nem sequer sabiam o que era o Sertão, preferiam dizer que ele não existia. Ao momento que esses seres do mato perdiam suas terras tinham que se embrenhar em outras campinas procurando outras formas de vida.

Nem pensavam em resistir perante o sistema que os expulsava de suas terras, eram da paz, mas de onde vieram esses caras com a pele “cor de cuia” que aqui viviam?

Muitos eram fugitivos da Guerra do Contestado (1912-1916), lá seus avós, pais, já haviam perdido suas terras para uma companhia internacional ali a mando para construir uma ferrovia e desenvolver a região nordeste de Santa Catarina e foram expulsos a laço e a pau pelo exército que foi protagonista em favor do Capitalismo e contra as famílias que viviam ali sossegadamente...


Após esse parênteses, nossa História continua, o acidente ocorreu na beira de uma sanga, a mãe segurava o filho no colo, banhando seu rosto entre a água fria corrente e o calor de suas lágrimas que cobriam o local de tristeza. Do horizonte, visto ofuscadamente pelo sol, aparece um homem, barba por fazer, corpo coberto pelo hábito marrom, um capuz que cobria sua cabeça, sandálias de couro, assoviando uma música junto de um pombinha campeira que segurava no dedo indicador aquele homem saiu correndo até a mãe em prantos lhe tirando o menino do colo e o apertando contra seu peito a criança pestanejou e parecia segurar em sua mãozinha o escapulário do monge.

Logo um clarão de fogo pareceu cegar instantaneamente o casal que logo só podia enxergar tudo como um eterno leite enquanto o jovem voltava ao colo da mãe e o monge sumia no clarão do sol daquela tarde do Sertão. Segundos depois, a íris do olho da mãe se reanima e ela vê seu filho dormindo com o corpo intacto, são e salvo bocejando e se levantando, na sua palma da mão esquerda uma chaga havia aparecido. O marido improvisou duas ripas para consertar a roda da carroça, a mãe com receio logo afastou o menino dos cavalos, mas esse logo se desvencilhou dos braços protetores de sua gestora para passar a mão nos negros alazões que o haviam machucado...


A família sagrada do sertão estava na estrada outra vez.

domingo, 21 de agosto de 2011

Contos do Rio Ligeiro beirando o c* do mundo - Badanha Senior e a chacina dos Negos Buraios



1947: O rio, sua velocidade descomunal, suas enchentes contínuas e desastrosas numa terra-sem-lei, palco da convivência de gringos e caboclos, desavenças, vinganças eram comuns no dia-a-dia do lugar chamado de "c* do mundo". (inspirado em relatos históricos)

Entre os afluentes do rio Chopim estava o Rio Ligeiro, acostumado a inundar com velocidade Villa Nova (atual Pato Branco), foi assim batizado ou melhor apelidado pelo “Ligeiro”, um paraguaio que ficava na encosta do rio fazendo briques (trocas) com qualquer pelego ou dinheirudo que ali passasse, sua moeda de troca era a erva-mate, vivia na corrida pra trocar tudo pela chamada “erva do diabo” - combustível potencializante e um afrodisíaco natural do sertão.

Logo ao lado da casa e do escritório improvisado do Ligeiro havia uma raia de cavalos onde a machaiada de Villa Nova se reunia numa raia pra ver os cavalos emparelharem enquanto já rolava uma aposta e a pinga ia comendo solta. Enquanto o martelinho (copo vazio de pinga) batia o balcão improvisado, os homens pegavam o chinaredo (mulherada) pra dançar. Mas ali não era apenas ambiente de confraternização, entre apostas rolando, copos vazios e mulheres faltando o tiro comia solto também. Lembro de uma prosa que rolava entre Mané Figurinha que se dizia o maior dono de terras da costa do Chopim, o “home véio” morava no Morro do Sovaco, esse morro que pra descer todo mundo acabava fedendo sovaco de cansado, então imagine o estado do peão.

Junto dele estava Badanha Senior, botas brancas, ficava inconfundível ainda mais fumando cachimbo – seu apelido mais tarde se tornou “Sócio da Souza Cruz”. Figura era sossegado, só pensava em trabalhar, só que era mentiroso e exagerado. Badanha era “bão de desaforo”, tanto que enquanto pagava um vermute com gelo pra duas chinas teve que mexer com seis caboclos do Buraio – lugar onde se produzia carvão no antigo Bairro Godoy, atual Vila Verde -, estavam no fudunço do lado da cancha de bocha tomando um gasosão:

-Oh pé sujo! Vá 'trabaiá' mais 27 ano pra comprar um bota dessa – bradou Badanha Senior.

-Home, pareee loco véio, os piá tão de boa ali – exclamou Figura.


Entre todos, praticamente azuis de tão sujos de carvão, cochichou o menor de todos e mais coceira, Fidelzito, o revolucionário, o crítico, o “inticão”, na chamada “quebrada” onde morava, anos depois representou a “banca” e venceu o inter-bairros de coceira, só coçava mesmo:

-Vamo bochá, vamo bochá?


O caboclo Viriato logo ironizou, retrucando com voz alta:

-'Vamo' se fincar mais pro lado que tá ali duas almofada com perfume de sovaco escorando as puta no barranco – só que falou só pra acender o estopim, ia fazendo exatamente o contrário, chegando mais perto dos dois com sua trupe esfumaçada.


Entre eles estava Nego Tiguera, só acompanhando o bando, um caboclo assustado que procedente do Contestado. Tiguera não gostava de briga, nenhum pouco. Além dele, os cinco queriam ferver o ki-suco, erguer o 'reio' naqueles gringos chamados de “boca aberta”.


-Oh 'rapaiz', vai pra lá que 'nóis tamo' proseando aqui home véio, tá sujando meus garrão com esses pé – Bagé falou pra Nego Wardo, o maior de todos, um caboclo virado em cicatrizes e em marcas de gado pelo corpo, caolho e com a garrafa vazia da gasosa entre os dedos suada e prontinha pra ser decepada nos 'corno' do gringo inticão.

-Comé que é, gringo cara de bagre? - Questionou Nego Juca que foi logo peitando Badanha enquanto era interrompido por Figurinha:

-Bá home, tome um gole do meu gole e fique com a minha 'muié'.

-Sai fora com essa fonte de 'gonorréiagem', não achei meu pinto no chiqueiro pra comer putedo! - exclamou Nego Lázaro.


Enquanto isso, Fidelzito apareceu com uma faca enferrujada e sem cabo, roubada de sua mãe que a usava para sangrar os porcos-do-mato que caçava à unha nos matos do atual Vila Verde. O pequeno coceira foi logo fincando no pulmãozão de Badanha que logo caiu sangrando. Foi aí que o tiro correu solto a partir da cancha de bocha enquanto gringos racistas xingavam os buraios de "negada do diabo".

Nego Tiguera sobreviveu pois se fincou dentro de um buraco de tatu pra fugir do degladeio, a chacina dos buraios não passaria por inquérito porque a pequena vila não possuía polícia. Apareceu o pirata do Chopim, Polaco Sukita, cabeludo e de óculos escuros, jogando os corpos dentro de um barquinho caíco proseava com o chefão Badanha e dizendo-lhe um conselho:

-A lei tá boa, não vai dar cadeia!


sábado, 13 de agosto de 2011

Pau, pau e pau no Rincão Torcido - Parte I


Lá pelos idos de 1947, após a fundação da Colônia Agrícola Nacional General Osório (CANGO) o pessoal de Beltrão ia dum lado pro outro do sertão do Paraná planejando bailões pra integrar a região recém-criada. A gringaiada peleava nessas lidas para poder se divertir, enxer o c* de cachaça e dar tiro pro alto (ARTE: Wellington Mitrut).


Atrasado, desceu corrido de cima do morro do urubu [1], saia de "drento" da patente o Gringo Rebosteio desbravador do sertão do Paraná e um dos fundadores da CANGO. Tava completamente atrasado para o baile que ia eleger a Miss Rincão Torcido... o porque do seu atraso logo conto com mais uns dois dedos de prosa...

Desceu desbarranquendo e torcendo o bigode - como de costume -, pisando nas poças d'água, bostas de égua chucra e tudo que vinha pela frente enquanto ia erguendo ceroula e o seu mijão [2] por cima e se fincava pra subir no trator do Véio Guanxume, véio mais grosso que pino de patrola, que já tava soltando uns "Porco dio, vamo caganeira" na boléia do trator.

Logo na caçamba ia Nego Vardo, um baita bugrão que só falava trabalhava que nem um potro (cavalo) dando coice na cerca, mááá quando o assunto era 'muié' e cachaça o home não ficava nenhum pouco atrás. Era mula do contrabando que vinha pelos rios Sant'Anna, Chopim e Marrecas.

Além dele, o Zandoneno, um cara susse, da paz mesmo, não mexia com ninguém, era bom amarrador de palanque, estrategista de erguer segurar bracatinga que aguentava gaiteiro gordo que nem porco o dia inteiro no palco dos bailões do sertão.

E João do Potreiro, comedor de galinha, pato, marreco, começou com as aves, logo pulou pra porca, ovelha, cabrita mas dizia ele que seu prazer maior era com égua. Acontece que essas História zoofílicas ele não abria assim, guardava pra seu prazer íntimo. Ah não ser quando no seu rancho, dentro de um galpão, as cadelas davam uns uivos altos e todo mundo se ligava da orgia canina que lá rolava.

E logo Rebosteio pintou na banca, pulando a tábua da carroceria e caindo com os dois pés sobre o tabuedo. Mas Gringo Rebosteio não é Rebosteio se não tiver incrementado de um total cheiro fétido e anal de bosta...

5 minutos antes, Rebosteio na patente ia dizendo enquanto sua merda caía no fundo da vala:

-Puta merda! Acabo o sabugo de milho e agora com o que que vô limpa o cu?

Logo seus pensamentos foram interrompidos pelo gritedo do véio pino de patrola:
-Porco dio, vamo caganeira, largue o merdedo aí rápido que tamo atrasado.

Rebosteio passou a mão nas pregas do seu toba e estoletiou a bosta na parede do lado duma imagem duma índia pelada da revista Cruzeiro. Descendo o barranco, não se ligou do estado que estava sua mão e foi logo torcendo o bigode.
Chegando no trator foi logo questionado pelo quietão Zandoneno que nunca falava mas tinha se ligado o que tinha acontecido e logo não perdeu a tirada:

-Véio, como que tu faz pra deixar o bigode lustroso desse jeito?
-É que eu TRÓÇO todo dia - logo Nego Vardo bêbado se despiguelou de dar risada e se mijou todo no chão enquanto aquele trator pulava pelos buracos da estrada, Guanxume ia soltando seus "porco cane" na boléia e a calça vartomundo de João do Potreiro ia se avolumando enquanto observava uma tropa de éguas que ia cruzando uma clareira entre a mata de araucárias, escutando uma gralha negra corveando sobre uma árvore canela, uma família de tatus ia se embucando na toca e a brisa tocava o rosto dos peões de lida que iam atravessar o matagal por três dias para chegar em Clevelândia armar aquele baile...

Esses personagens se tornam meros detalhes adaptados a natureza, a verdadeira História está na bela pintura que era a paisagem do sertão...

Logo um tiro interrompeu o voo a passarada, Guanxume Pino de Patrola com seu trabuco esfumaçando numa mão, um litro de pinga na outra e segurando o volante do trator com seu bagos soltou um grito: "Porcozio: Pau, pau e pau no Rincão Torcido!"

1-Inspirado e retirado de "Cabrilinda" da banda Paraná Blues.
2-O "mijão" era uma calça usada por baixo da bombacha para que ninguém se esfriasse nas veredas do inverno sertanista do sudoeste do Paraná