sábado, 17 de dezembro de 2011

O Apocalipse do Sertão - Quarta Porteira: Resistência (Diário de bordo - quarta parte)

Ponta Grossa, 17 de junho de 2008


-"Me perdoe, grande latifundiário da cidade se minha presença lhe agride tanto".

Em meio a chuva ele gritava isso a um velho que estava de botas fumando charuto e tendo os sapatos engraxados por um guri. E sua ironia indignava mais ainda aquele "senhor de terras" dos Campos Gerais que parecia ter se arrependido de ter pronunciado aquelas duas palavras: "cabeludo viado".

Camiseta xadrez, cabelo comprido, calça rasgada... Meses foram o suficiente para aquele rapaz ingênuo do interior do Paraná  enfrentar os mandos e desmandos da "cidade grande".


Se adaptar? Juntamente de seu fiel companheiro Tenor que cantava ópera pelas ruas da cidade e falava italiano ele não se sentia capaz disso, mas sim de interferir e transformar! 

O sistema o abominava, os valores estavam mudados e toda simplicidade da vida foi trocada por um jogo de interesses. Hoje, escutando o barulho da água que cai lá do alto, tudo passa a fazer sentido.



Coronel Vivida - 17 de dezembro de 2011, 16:07
tocando "Bicho do Paraná"
no Vargas
Eu o vejo! Antes desse grande fim, da catástrofe anunciada e prevista alguém viveu dando a outra face e reencarna carregado de feridas e chagas na alma.


Sua dor é tão grande que ele apenas tem uma alternativa. Fugir!


Longe dos "grandes" centros, com "grandes" pessoas e suas "grandes" importâncias.

Um cara como qualquer outro, mas que ao invés de abrir sorrisos pra qualquer um mandava tudo "se foder" e fazia cara feia em público.


Os matos eram explorados e ali ele dizia achar um novo sentido para o seu EU.

Uma viagem psicológica e psicotrópica. Ele buscava o que chamava de "uma pira verdadeira" e procurava refletir isso no estilo de música e na sua forma de se vestir. 

E, de repente, foi alvo de indignação, pois mesmo querendo pegar as cavalas do sertanejo universitário não conseguia se aproximar delas pagando "gole" e botando "banca", ele buscava nas mulheres o sentimento.

Odiava roupas novas, pois se apegava a suas vestes antigas e até mesmo rasgadas.

Percebeu que a forma de pensamento dominante na sua época era enrrustida de dos preconceitos enlatados de 30 anos atrás, do desenvolvimento tecno-facista. Pois via os miseráveis defendendo aqueles que geravam sua miséria

Fugia, simplesmente isso, sendo um pequeno burguês aproveitava o que o mínimo que o sistema lhe oferecia, não conseguia servir ao capital e em alguns momentos se sentiu incapaz de arrumar companhia por conta disso.

Um dia depois de um bico numa cachoeira soltou expotaneamente um berro: EU SOU UM PIÁ!

Mas ele não é nosso herói, é talvez um louco, um pseudo-esquerdista metidpo a revoltado, a maior fraude comunista-hippie-beatnik esfacelada e materializada no corpo de um pequeno-burguês vestido que queria ter nascido mendigo. 

Seu fim se deu num campo de flores, durante a primavera. Não foi ele quem criou a contra-mola que traria primavera segurada entre os seus dentes!


Sepultou os seus sentimentos negativos em meio a toda destruição daquele Apocalipse, ele renascia.


Intoxicado pela doçura da vida que era o néctas daquela estação. Ele sempre volta enxer o saco com suas "baboseiras ideológicas", mostrando que foi o padeiro que vendeu os melhores sonhos, foi o bodegueiro que não cobrava fiado, foi nadador de rios e cachoeiras, foi admirador dos beija-flores e borboletas, foi o violeiro nos bares dos velhos boêmios, foi proseador e chimarrãozeador entre as tiazonas velhas, foi o mais servil amante e fui sobretudo o maior cozinheiro de Genghis-Khan dum acampamento qualquer que não lembro onde foi...

O profeta dessa Apocalipse não era um monge budista capacitado por seu interior. No ronco dos motores sua meditação era o Rock n'Roll que bradava acompanhando o ritmo dos rios e a queda das cachoeiras que caíam como suas lágrimas ao produzir essas palavras.

Ele era a RESISTÊNCIA e o SERTÃO era seu aconchego, já que todas as vezes que voltava pra cidade era chamado de BICHO DO MATO.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Branca Leone, o gringo que comeu a Gema sem quebrar o ovo

Era pra ser mais um dia normal e tranquilo na bodega da Linha São Paulo, no último ano da década de 60. Mas sabem bem os leitores que tal estabelecimento, para fazer jus ao seu nome, necessita ser o palco de algumas brigas banalizadas, apostas fúteis e mentiras bem aplicadas. E acrescente-se: escândalos sexuais-comunitários também.

Lá pelo décimo trago, um grupo de gringos realizava o concurso de eucentrismo, a máxima representação dessa coisa que a espécie humana tem em ressaltar as qualidades e esconder os defeitos. Um dizia ter colhido o melhor feijão da região, outro ter carneado um leitão que deu mais de 100kg de banha, outro lá dizia ter o cavalo mais rápido, ... Mas era sabido que a veracidade habitava as palavras do João do Poço, enquanto este falava das habilidades e vitórias de seu galo de rinha. Batizado de Jânio Quadros, em razão do semelhante hábito ao do ex-presidente em tomar uma de vez em quando e pelo andar torto, o animal era conhecido em todo o sertão pela boa habilidade em ser mau. Mais feio que indigestão de torresmo, na arena o galo índio muía os adversários.

Foi este raro espécime que despertou a cobiça de Angelin Brancalione (mas chama de Branca Leone que o pessoal conhece mais). O gringo ouvia a conversa no bar e propostiáva o dono do galo com vistas a fechar uma negociação.
- Te dou uma novilha manca.
- Não.
- Uma fublé enferrujada.
- Menos ainda, imundiçia.
- Trêis borsa de feijão véio?
- Do meu galo não me desfaço tão fácil – dizia João do Poço, mais duro de dobrar que salame da colônia.

Mas Branca Leone não era de fácil desistência. Podia ser monte no bríque, mas era ligeiro na malandragem. Começou com a fala mansa e logo foi atraindo a atenção dos presentes dizendo ser capaz de algo até então impossível para a humanidade eurosudoestina: comer a gema sem quebrar o ovo. De pronto começaram as dúvidas e Branca Leone agora é quem se fazia de difícil. Todos imploravam para ver o feitio do gringo, mas ele só o faria em troca do galo, que após muita insistência foi objeto da aposta. Sua habilidade quase que transcendental seria comprovada na semana seguinte, conforme combinado, no mesmo recinto, no mesmo horário.

Dito e feito, na quarta badalada do relógio apareceram todos à bodega. Era evento maior que a festa do padroeiro. Até o padre Moisés e o coronel Pacheco Lustosa se achegaram a garantiram um lugarzinho no estabelecimento, no dia que já contabilizava a maior venda de pinga com mentruz da história da Linha São Paulo, até mais que quando o time local foi campeão do torneio municipal, num jogo conhecido por “Massacre do Varzeano”: foram dois mortos, cinco elijados e um capado. Aliás, o time só ganhou por ter tirado mais adversários do campo na base do tiro, da faconada e do grito.

Com poucos minutos de atraso e já alguns tragos na cabeça, surge na porta da bodega a estrela principal do dia e figura de idolatria entre seus contemporâneos locais. Alguns espectadores passaram mal em razão da alta taxa de adrenalina, outros tiveram crise de asma e teve uns que caiam de beudo mesmo. Branca Leone cumprimenta com um típico “taaaarddeeeeeee”, dá dois passos à frente, verifica que não há ninguém na retaguarda, arreia a calça com guaiaca e tudo, põe uma mão na cintura, e diz, batendo com a outra no saco:
- Tá qui, ó. Não quebrei nenhum dos meus dois ovo. Se quiserem confirmá podem até vim passá a mão, mas sem viadage.

A multidão, atônita e meio sem entender aquele ato de pudor, não manifestou nenhuma reação. Apenas consentiu. Não obtendo resposta alguma contestando a veracidade de seu feito, Branca Leone ergueu a calça, assegurou o fechamento do zip, pegou o galo Jânio, que por direito agora lhe pertencia, e foi embora. Somente dias depois é que, pela boca do bodegueiro, se espalhou a notícia de que Branca Leone havia mantido relações sexuais com uma tal de Gema Lustosa, moça filha do coronel Pacheco, e não sofreu nenhuma avaria nos testículos. Cumpriu, assim, sua palavra de que comia a Gema sem quebrar os ovos.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O Apocalipse no sertão: Terceira porteira: A Paz (Diário de bordo - terceira parte)

Paz, 16 de novembro de 2011, 16:04

E eis que escrevendo sobre a própria vida, parei na comunidade de Paz para escutar a História dos outros. Agora transcrevo o que ouvi.


Uma vez uma mulher possuía uma doença inexplicável e extremamente depressiva

acordava no meio da noite e chorava sem parar. Seu filho de 12 anos a pedia:

-'Manhê', por que tu chora? Não chora mãe!

Bodega do Seu Bastião
onde me foi relatada essa História


Sem resposta, a velha polaca fazedoras de cucas e doces, dona de uma padaria caseira continuava seu pranto interminável. Rogou a todas as Nossas Senhoras que conhecia pedindo que aquele sofrimento de anos se findasse, desde a de Fátima, passando pela virgem Aparecida, do Perpétuo Socorro e até Nossa Senhora da Cabeça. Pediu também para São Braz, São Bartolomeu e até Santo Expedito. Suas preces não foram atendidas. 

O chamado "Papai Noel"
da Paz contando um causo
Numa noite quando a chuva caía violentamente sem cessar entre "relampejos" e trovões, Dona Gertulina sentia imensas dores no pulmão que lhe faziam sofrer mais ainda, não aguentava nem com as pernas até que se ajoelhou e do nada pediu a São Jorge, o último santo conhecido, o 13o. santo chamado por sua voz.

E disse:

-Jorge (tinha o costume de chamar os "santos" com afinidade), ocê que é chamado guerreiro, que cativou o dragão do mal e o tornou bom, me faz curada, me mostra a cura nem que seja por um andarilho desses que vem aqui pedir 'as coisa'. 


São Jorge da Capadócia
representado na Igreja
Ucraniana Oriental
Após aquele pedido, a chuva parou. E ela se convenceu de que poderia dormir. Caiu na cama, até que no outro dia, a tarde como acontecia frequentemente apareceu um andarilho desconhecido com os cabelos que pareciam não serem lavados há tempos, grandes mechas que diziam parecer um novelo de lã de ovelha. Ele ali parou e pediu um copo d'água e logo também lhe foi oferecido o cepo pra sentar. O homem cansado pediu um "pôso" para se abrigar da chuva e Gertulina não recusou. Na janta lhe serviu uma sopa quente não sem antes agradecer pelas vendas na padaria, pelas amizades na comunidade e até pela chuva que caía e daria uma boa colheita naquele ano.


O andarilho após dizer amém olhou para a mulher e perguntou: 


- Dona, tu parece tá sofrida.


Sua resposta foi uma lágrima escorrida que parecia queimar-lhe o rosto. Ele logou lhe falou:


-O que tu 'teim' de 'fazê' é um remédio que eu 'vô' te ensina. Tu pega uma folha de 'loro' e corta um pedacinho de cipó-sumo daqueles que tem ali 'atrais' da casa. Ferve e toma tudo num golaço que meio que desça te queimando os 'purmão'.

Gertulina anotou a receita da xaropada num papel amarelado. Na manhã seguinte, o andarilho se despediu e agradeceu a comida, o "pôso", e a comida até se findar pelo horizonte para nunca mais ser visto.


Seu João, o filho de Gertulina segurando
um pedaço de cipó-sumo que dizem que
afina o sangue e combate a hipertensão
A padeira ao tomar a xaropada caiu dura no chão e horas depois de um sono profundo acordou com seu filho lhe segurando a mão e seu marido cerreiro que estava na estrada há mais de 20 dias a observando da porta. 
A cerraria de Paz

Abraçou ambos e agradeceu a Deus sorrindo para nunca mais chorar. Ninguém sabe nem sequer o nome daquele andarilho, mas eu tenho por certeza que era Jorge.


Agora eu descobri que a Paz existe, ele está dentro dos nossos corações e nas histórias que carregamos.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Apocalipse no Sertão - Segunda Porteira: Êxodo da Babilônia - Reserva de Mangueirinha e Serra da Esperança (Diário de Bordo - segunda parte)

Nascer do sol na Reserva de Mangueirinha
"E vou seguindo
Caminhando, me espanlhando
Levando poeira no meu coração


Eu vou, eu vou
Sem olhar pra trás" (...)






                                                                                                              





"Eu quero ir embora antes de parar" (João Lopes e Blindagem)

12 de novembro de 2011
05:37

A História volta a ser uma viagem, violão nas costas, revistas zines na mala...

Professor, universitário? De forma alguma, o personagem que vos fala transmutou-se num maluco de BR, sobre duas rodas e sob uma lua, um micróbio se espalhando por esse corredor que é o Paraná ainda de madrugada... O dia viria me recepcionar somente mais tarde.

"Eu, eu ando de passo leve pra não acordar o dia

Sou da noite a companheira mais fiel qu'ela queria" (Raul Seixas) 

A lua foi companheira do início da viagem cósmica, minha fuga do sertão até a cidade civilizada. Sobre uma moto tudo é passageiro, Pato Branco, Coronel Vivida, Mangueirinha...

A primeira parada foi na companhia do sol, eu amanhecia perante a maior reserva de Araucárias do mundo, 17.308,07 km quasdrados de mata preservada pelos Kaingang e Guarani que ali vivem.

A lágrima que desceu foi um abraço na paisagem e um desejo que a força das lutas indígenas não cessem. Mandei boas vibrações ao cacique Valdir e logo relembrei os ensinamentos do BAGHAVAD-GITÃ e o calor daquele choro representou o grande ensinamento de Krishna,  o espírito da História andava agora na contramão (LEIAM O BHAGAVAD-GITÃ).


Do outro lado da História vejo um velho com uma enxada e um cabelo com dreads naturais do sertão, sentia o cheiro de suor e mato do outro lado da estrada. Essa foi a grande lição daquela manhã.

Caí na estrada pra voltar às raízes, me perdi na rodovia pra me encontrar em outras vidas. Família tropeira e lenheira, os Pocai eram conhecidos por suas aventuras nos morros do Rio Grande e nos sertões do Paraná muito antes de eu pensar em botar a bota na estrada e escrever as primeiras linhas. Minha família era meio excluída dos jantares da elite gaúcha e dos churrascos dos fazendeiros e deputados de Palmas e Clevelândia:Ao som desse Creedence descendo a Serra da Esperança esperava via que a grande felicidade era ser do meu jeito, considerado louco sem remédio mas também sem tédio.
A Serra da Esperança,
ao fundo o "Chapéu do Bispo".
"Não sou eu, não sou eu Eu não sou filho de um milionário, não Não sou eu, não sou eu Eu não sou nenhum felizardo, não"


Cachoeira, oásis no sertão
E foi enrolando aquele palinha ao som de Creedence que lembrei todos os banhos nu nas cachoeiras, comendo cogumelos azuis, tomando mate com os caboclos no interior desses belos sertões. Como uma pessoa dessa pode ser considerada normal?


O sangue é o passado, mas o futuro é o Apocalipse.

Se antigamente resolvíamos tudo na bala, posteriormente a natureza vai cobrar nossas atitudes péssimas perante ela.


E agora entendo porque do meu jeito debochado ideológicamente falando escrevi e até estive do lado dos estudantes, trabalhadores, sem-terra, indígenas e caboclos...

Mas definir um posicionamento político no sertão não é o suficiente, muito distante daquele CAOS URBANO lembro que ainda falta fugir com essa Águia Negra pelo sertão (moto), enfrentar as 2 bestas, derrubar os 10 reis, recusar a sedução da metetriz, aceitar os 7 flagelos de Deus e por fim resistir em meio a queda da Babilônia. O dragão que possuo dentro de mim já foi domesticado (LEIAM O APOCALIPSE).

Foi nessa estrada do sertão que aprendi que o destino da viagem é a gente quem faz, temos que aceitar o caminho escolhido e não se arrepender. Se um maremoto invadir os sertões, se os prédios desabarem, se as pessoas se perderem, tudo será dor e sofrimento, mas penso que essa é a única forma de darmos um basta nos nossos erros.

Por outro lado, escuto os pássaros sob essas árvores e penso que essa sociedade já deu no saco!
"O sertão vai virar mar"

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Sugestiva homenagem

Um exemplo aplicável ao Sertão Paranaense

Por vezes a hipocrisia humana supera-se em grau, número e qualidade. Ela é mais nítida nos monumentos, nomes de ruas, bairros e cidades, em que mártires do acaso e heróis que nunca o foram são imortalizados.

Mas na cidadezinha de São Mateus, no Espírito Santo, uma justa homenagem consta grifada numa placa. Nela, a população expressa seu reconhecimento e gratidão ás prostitutas que preservaram o que hoje é o Sítio Histórico Porto de São Mateus.

sábado, 29 de outubro de 2011

O Apocalipse do Sertão - Primeira Porteira: O sertão abandonado (Diário de bordo - primeira parte)


29 de outubro de 2011 - proximidades do rio Forquilha, entre Renascença e Vitorino...


 "Slow ride, take it easy" (Foghat)

Perto do dia do HALLOWEEN, do dia de todos os santos e dos finados, de um lado a outro da pista o sertão era companhia desta tarde. Os primeiros pingos de chuva começavam a cair na estrada selvagem, procuro um lugar para me abrigar e tirar uma pestana, até que me aparece um parque de diversões abandonado no coração do sertão do Paraná.



"Atávico surungo de chão batido
Xucrismo curtido na tarca do tempo
Refaz invernadas de ânsias perdidas
E encilha a vida no lombo do vento"
(Os Serranos)


Dizem que o último baile foi Drurys
As trepadeiras sobem sobre o ginásio de dança
Em todos os anos de andarilho, de magrela e de moto, nunca havia achado um lugar como aquele. A moto ia derrapando entre o barro e o mato na estrada além da porteira do CTG: Renascendo a Tradição. Abandonado se tornava um espetáculo do silêncio apenas rompido pelo assoviar dos gaviões e o ronco da moto: ÁGUIA NEGRA DO SERTÃO...


Garrafas quebradas, banheiros detonados, as trepadeiras sobre o ginásio de dança me sentia um caubói psicodélico vendo a vitória de uma aliada sobre nós.

A pista de gineteadas, o pavilhão e a capela imóvel... Num suspiro profundo vivo dentro de mim cada ginete dado no lombo dos bois chucros, sinto o sabor da cerveja gelada sendo servida, cada chula disputada entre as varas do salão Até tudo ser interrompido por um tiro, a morte é o fim do bailão...




O último gole...
Entre os valores, a honra e a moral, construções sendo comidas pelo matagal, a natureza toma forma e faz delas meros espetáculos da decadência da aculturação gaúcha na região. Sabemos que apesar de cultuar valores, alguns setores da cultura gaúcha tentaram impregnar o machismo, o conservadorismo e o paternalismo naqueles homens mais chucros que os cavalos que eles montavam.


Valores despedaçados pela atual fase do consumo, ao invés daquele CTG seguir seu lema e renascer, ele está caindo perante o capitalismo, agonizando, morrendo aos poucos pela pós-modernidade do sertão.


De resto são somente fotografias, registros da atual fase de um Apocalipse cultural no sertão do Paraná dominado por anjos e demônios, guris sem amor que só pensar em "foder" e gurias consumistas observando qual é o último lançamento de celular ou que roupa está na moda...

Foi nesse tiroteio do passado com o presente que fui interrompido pelo horizonte que se abria...


"Riders on the storm
Into this house we're born
Into this world we're thrown
Like a dog without a bone
An actor out alone"
(The Doors)


Mãos no guidão, desviando os caminhões que jogavam água para todos os lados, fui espectador de um verdadeiro Apocalipse do sertão sendo anunciado e orquestrado por trombetas, raios e relâmpagos numa intensa batalha entre Deus e o diabo acontecida no céu... Passando pela comunidade do Anjo da Guarda olhei bem dentro dos olhos do Cristo pregado na cruz e agradeci por todo aquele espetáculo ter sido preparado pra mim.

"Prá ser jesus numa moto,
Che guevara dos acostamentos,
Bob dylan numa antiga foto,
Cassius clay antes dos tratamentos,
John lennon de outras estradas,
Easy rider, dúvida e eclipse,
São tomé das letras apagadas,
E arcanjo gabriel sem apocalipse
" (Sá, Rodrix e Guarabira).

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Dicionário do Sertão do Paraná.

por Leandro Czerniaski, o Porteiro de Zona e Roberto Pocai.

Alemoa: loura


Apinchá: jogar


Atorá: cortar


Baita: grande


Bandiar: Ir a algum lugar



Bodiar: descansar, dormir



Bostiá: incomodar


Briquiá: trocar, de mano ou não


Camassada de pau: apanhar


Campiá: procurar


Catrefa: pessoas que não valem nada


Chumaço: conjunto de alguma coisa


Cóça de laço: apanhar, levar uma surra


De vereda: rápido


De revesgueio: de um tal jeito


Diabaria: confusão



Esgualepado: cansado



Estrupiado: Machucado



Fincá: 1. cravar, 2. fazer (por exemplo: "vamô se fincá nisso aí agora)


Fuque: fusca


Garrão: calcanhar


Gole: bebida


Gorpeaço: embriaguez



Incebando: enrolando, fazendo cera


Ingrupi: enganar


Inôzá: amarrar


Intertê: fazer passar o tempo com algo


Inticá: provocar


Intuiado: cheio


Invaretado: nervoso


Japona: jaqueta de nylon


Jóssa: coisa


Judiá: mal tratar


Jumbrelo: pênis



Kakedo: pessoa que não vale nada


Lagartiá: deitar no sol



Lazarento: xingamento


Lograr: 1.enganar 2.se dar bem em um negócio em cima de outra pessoa



Luitá: brigar


Malinducado: mal educado


Mio: milho



Negócio porco: negócio mal-feito onde alguém sai em desvantagem



Oreia-seca: Pessoa sem muito poder, que não convence ninguém, pobre coitado



Paiêro: fumo de palha


Pânca: modo de se portar, por exemplo: panca de motoqueiro (jeito de motoqueiro)

Peral: 1.trajeto ingrime  2.descida


Pereba: doença



Pescociá: olhar para os lados, matar tempo


Pestiado: com alguma doença


Pexada: acidente


Piá pançudo: guri bobo


Podá: ultrapassar, o mesmo que apodá


Potiéca: Meleca



Pozá: dormir em algum lugar


Pruziá: conversar


Quebrá: se dar mal, por exemplo: o gringo lá se quebrô.



Rancho: compra do mês


Relampejando: trovejando


Resbalão: escorregar


Rinso: sabão em pó


Sertão: mato fechado, sem colonização


Sinalêra: semáforo


Táio: corte


Tchuco: bêbado


Trupicá: tropeçar


Tunda de laço: apanhar


Vortiada: passeio


Xana: vagina



Ximia: doce de passar no pão

Xucro: violento, mal-educado

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O caminho das pedras no Sertão do Paraná


Sob a luz da lua mesmo com sol claro, no asfalto quente ou nesse caminho das pedras, pra fugir da chuva e ver o olho do céu se abrir, adubando o solo com o que está morto pra ver o que é vivo nascer. Lembro o quanto acreditávamos ser obrigados a viver em cemitérios, entre pessoas mortas que querem nos corroer com sua ferrugem e as mentiras que inventam... Corria contra o tempo, agora estou a favor dele, agora sonho com histórias de gnomos e pescadores sem cabeça em volta de um fogão de lenha, abri um orifício além daquela cela de prédios e construções, agora vago entre caminhões me jogando fumaça e imensas colheitadeiras me atirando barro no rosto, desviando galizés, porcos chucros e cavalos selvagens na estrada. Sou o equilíbrio e a força que guiam meus olhos como um farol no infinito das rodovias. Sei que a morte continuará me perseguindo mas estou dois passos a frente dela!
(Itapejara d'Oeste, caminho das pedras, 16 de outubro de 2011).

sábado, 15 de outubro de 2011

Os Leite contra os Bento: O pau comeu solto em Campo-Êre (parte I)


“Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus, mesmo, se vier, que venha armado.

Não é a terra que define o sertão, mas o sangue que pinga sobre ela
Conceituar o que seria o sertão se tornaria uma tarefa árdua, porém, procurada por alguns intelectuais como Guimarães Rosa que em 1956 soube expressar com sábias palavras o que é esse pedaço de terra.

Mas a mais firmante definição se dá por Euclides da Cunha que ao invés de definir o que é o sertão preferiu usar a expressão "sertões".

É nessa pluralidade que o sertão ultrapassa fronteiras, nenhuma região pode deter pra si a exclusividade do título de sertão. O sertão sangrento, de tantas Histórias que não são minhas, são de todos, ultrapassa os conflitos entre coronéis e cangaceiros do nordeste brasileiro, vai além das incursões dos bandeirantes em Minas Gerais e voa raso por cima do sossego dos caipiras paulistas chegando ao rincão do sudoeste do Paraná...

1980-1990
E um pouco além dos limites do estado paranaense, no município de Campo-Erê-SC as plantações de milho estavam altas para a colheita. Formada, como todo sertão, por famílias caboclas e de gringos, a sede Campo-Erê via acontecer no pavilhão da igreja os maiores bailões da região.
"Se foi tiro ou cimbronaço, pago pra ver
Deixa que venha no braço pra se entender
Se o facão marca o compasso, deixa correr
Enquanto sobrar um pedaço vamo metê"

(trecho de Baile de Fronteira de Luiz Carlos Borges)

De 30 a 70 cm, fura-buxo de qualqer loco
Chegava no baile 7 'home', todos com a cara que era 'perau' de brabo. Minutos antes estavam no matão de atrás da Igreja escondendo num taquaral 7 facões pra depois do baile:

-Vamo se fincá pro baile, os Leite vão tá lá e o bicho vai pegá pra eles - disse Sebastião Bento, filho mais velho de 6.

- Nego Gato, agora que tu saiu do cadeião, vamo te vingá com o bucho daquele "amardiçoado" vai escorre pelo chão do baile - disse 'véio' Arcides, patriarca que gerou os 6.

Alcides, o Bom. Patriarca dos Bento.
O piazinho da turma, Maurinho, 14 ano, da turma olha de longe uma mocinha que ele poderia "tentiar" (conquistar). Uma, loirinha e magrinha é filha do véio Reco, gringo, era uma onça de brabo e esperto que nem raposa. Logo leva um surdão na orelha de seu irmão Nego Tive:

- Ocê tá aqui pra vingá teu mano rapaiz! Não tá aqui pra tentiá muié, ela é boa má dexe pra depois!

Os olhos úmidos de choro do rapaz fitavam os cabelos louros de sua amada que conhecia da escolinha, enquanto era distanciado dela puxado pelo braço até o balcão onde lhe foi servido um gole de cachaça.

Do outro lado, o sangue também fervia. Os Leite, em 7 também, enxergavam de longe e cochichavam formulando uma estratégia de batalha pra pegarem os 7 negos numa avoada.

Isso tudo foi nos primeiros 5 minutos de baile, o conjunto começa uma vanera e Nego Saci, 18 anos, o mais novo dos Leite, dá um pulo de cima do palco puxando de dentro das cueca uma adaga enquanto o chefe da família Nego Tiziu cai pro meio do pavilhão gritando um urro selvagem que parece ter interrompido o baile todo. Era a ordem de batalha!

A peleia não era só entre as famílias, os seguranças tinham de ser os primeiros a ser rendidos. Ambas as famílias deveriam "erguem no laço" o borracheiro Gumercindo, o peão Valdinei, o mecânico Zaquel e o ministro da igreja João Taborda. 

Mas não foi um minuto todos aqueles que deveriam proteger o baile estavam no chão, nenhum gringo brigava como aqueles que possuíam 4.000 anos de lutas tribais no seu sangue. Descendentes de indígenas que brigavam com quem fosse e pelo que fosse.

E não era somente as duas famílias que iam entrar pro pau naquela noite. Só nesses primeiros momentos, 17 brigas já aconteciam em todo pavilhão. Uns se soqueavam por mulher, outros por bebida, outros por time de futebol... Os motivos eram infindáveis.

Do lado do conjunto tocando, assistia a tudo o maior fazendeiro de Campo-Erê: Laurindo (o sobrenome não posso citar) que ria juntamente com o véio Reco.
Os Bento estavam em total desvantagem já que os Leite estavam armados com pexeiras prontos pra faquear Deus e o mundo naquele rodeio de pau! Conseguiram entrar pois o ministro Taborda não revistou os 7, por que? Tudo a mando do coronel Laurindo...

Enquanto isso, Maurinho voltava pra dentro do baile com os 7 facões jogando-os para seus irmãos que estavam na frente do conjunto que continuava uma vanera.

O baile mesmo não parava, no meio do fudunço, os casais iam bailando escorregando no sangue derramado no chão que logo empossava também de barro, cachaça e suor...

O pau ainda ia comer solto praquelas hora!
_________________________________________________________CONTINUA!

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Sangue, suor e cachaça: A bodega do Nêne e o tesão do sertão (parte 2).



Logo naquela bodega, um parente distante do índio Condá havia chegado. Vindo de Chapecó-SC, era um charruá, tipo um índio adaptado a vida do branco, caçador e comerciante do mato que ia de cidade em cidade vendendo o que pegava no mato. Só que o charruá Viriato de uns anos pra cá estava convertido em um verdadeiro pirata do sertão, amarrado no seu cavalo baio e pegando chuva tinha um guri de 8 anos de idade.


O piá já tava todo cagado, virado em merda. Mas foi dentro da bodega que deu a bosta, logo o charruá Viriato que diziam ser "índio civilizado" mostrou que não honrava seu adjetivo. O cara tava como dizem "peidando de bêbado"  foi puxa pelo braço Marilu, que estava no colo de Araújo:

-Ocê deve de ter perdido o amor pela vida - falou Araújo, que logo ordenou seus 2 capangas a amarrar Viriato.


Esse por sua vez já tirou um facão que diziam que cortava até poste de luz, mesmo que esses não existissem na época. Fincou no braço de um deles, dando um voadora no outro e logo apoiando a outra perna no pescoço do outro deu um salto mortal e caindo de pé e sobreolhando ambos por debaixo da aba do seu chapéu. Araújo gritava!


Marilu fugiu gritando lá pra trás onde tinha um tanque e onde estava Ianara e o tropeiro Nego Jundiá, ou seja, ali o pau tava comendo também...


Sei dizer que só pararam Viriato com 7 tiros, um em cada xacra do seu corpo. O último tiro atingiu da sua espinha passando pelo "toba" até explodir seu saco. "Mááá home, fiz os bago do peão voar pra fora da bodega", dizia Nêne, autor dos disparos.


A festança na bodega correu solta, logo chegaram dois gaiteiros, Araújo jogava carteado com seus dois capangas e um ervateiro fumando um paieiro de meio metro daqueles que dava pra ir de Viamão-RS a Sorocaba-SP fumando o mesmo.


Esse pairento que se considerava liso no carteado era o véio Tadeu, um verdadeiro malandro de barraca, apaixonado pela buxuda gordaça Hermelina. Só que essa não lhe dava moral, metido a poeta declamava versos para ela com adjetivos como "meu suculento toicinho", "meu torresminho crocante"... 

O pior que a bicha não dava o braço a torcer pelo peão. Nêne chamou Tadeu no balcão e lhe serviu uma jurubeba:


- Má home, ocê 18 fio (filhos), vem aí pra se putiar com essa loca aí home! Largô os piá trabalhando na erva-mate, fazendo contrabando e não larga um pila drento de casa, crie vergonha nessa cara home, tudo bem que a buxuda aí se mija de tesão por você, má vá fazê festa com a tua famía (família) - lhe aconselhava Nêne.

- Cara! Eu sou cristão! Dizimista fiel, ajudei a construir a Catedral de Palmas! Minha muié é honrada, com ela não rola cu nem putaria nenhuma. Já com a Hermelina eu como a vontade, chego de arranca fejão de atrás dela! - respondeu Tadeu fumando seu paieiro.




Por coincidência uma buxada estava sendo servida na bodega. Só que Araújo, já embriagado com o "pau que era um osso" como diziam, quis dar uma de machão na frente da mulherada:


- Má o que que é isso!? Tô pagando a festa e me servem merda de boi pra comê!?

- Mas cara! É o que tem pra hoje e esse nem to te cobrando, salame, filé, charque, acabou tudo no sertão - retrucou Nêne.


- Mas ninguém aqui vai comer merda, eu trato bem meus funcionário e os meus buxo por isso não meto neles buxo dos otros, mas os teu já vão com arroz! - falou isso, sacando seu 38 e detonando a panela de barro onde estava a buxada.


Hermelina logo saiu pra fora pra junto de Jundiá que estava desossando Marilu - a amante de Araújo. A História tava pra feder muito mais do que aquele buxo explodido por toda bodega.

Nêne se cagou de medo e baixou a guarda pra Araújo que logo lhe deu uma coronhada com o revólver dizendo:

- Tá perdoado, ma saiba seu merda que quem manda nesse sertão, nesses matão esquecido por Deus, SOU EU! E por falar em comer cadê a china que estava aqui no meu colo (Marilu).


Aí que o negócio derreteu. Foi de atrás da bodega que sua ilusão foi desfeita, o "baita serpelo", como contam, de Jundiá se atravessava pra "drento" de Marilu enquanto essa gritava de prazer. E foi assim que ambos morreram, na melhor situação que um ser humano pode estar.


Araújo viu cair sua amante com correntinhas, pulseiras e o vestido que ele havia lhe presenteado além de uns 1.000 réis que ela havia lhe furtado e que estavam dentro do seu sutiã.


Mas a catuaba que o bicho tinha tomado já tinha "fazido" efeito! Não tinha como segura, com o "jumbrelo" já pra fora da calça ele caiu em cima de Hermelina, mas logo foi interceptado por Tadeu:


- Nessa, tu não vai metê a mão!

- Então vamo vê - com o revólver esfumaçando apontou para Tadeu que logo que rebostiou tudo, mas ficou firme na sua posição.


- Atira seu merda, atira, que nenhuma mulher quer dar pra um cabra ladrão de terras que nem você, no máximo querem teu dinheiro, seu explorador pau no cu!


Araújo matou Tadeu e entrou pra dentro como se nada tivesse acontecido, dizendo: 


- Arrumá otro pra fazê dupra com eu (dupla comigo).


Hermelina viu seu amado morrer por amor, coisa que carregou em suas banhas e na sua memória até o fim de sua vida. Uma puta gorda que guardava consigo um amor fúnebre mas belo do amado que a defendeu... 

Fugiu com o cavalo do charruá e com o jovem guri que havia sido raptado pelo "índio civilizado" e agora iria viver numa zona com Hermelina. 

O olhar daquela criança antes inocente, agora conhecia o verdadeiro sabor do sertão, um sabor que palpitava no peito de qualquer "bicho macho" daquelas bandas e que possuía o gosto de suor, sangue e cachaça.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Filosofias do sertão: A mulher e a uva

foto retirada de um
dos parreirais de Mariópolis
Esse final de semana passei no parreiral do véio Arlindo em Nova Concórdia (Francisco Beltrão), arrancava as uvas com o meu canivete e chupava ali mesmo, logo perguntei ao gringo o que se ele sabia o que era uma mulher e ele logo respondeu sem exitar:

Iiiiih cara, todaa muié é como a uva. Tantas partes a compõe. Ela não é uma. Ela é o todo. Provarás um gomo e a quererás toda. A casca, o suco, a semente. O cacho todo. Quando é doce, azeda, ácida, amarga. Porque há mulher para todos os gostos. E uma só, tua, para todos os teus gostos.

Entre tantas estou a procura dessa uva até hoje...

inspirado em:
http://www.recantodasletras.com.br/

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Recortes de jornais

"A manhã vitoriosa, assim relato o fim daquela madrugada revoltosa. Raiava o dia no sertão paranaense, o sol se mirava entre as nuvens que a noite toda choveram e entre as araucárias em pé, algumas destoavam já denunciando o desmatamento e a derrubada praticada pelas serrarias vindas de Palmas. Em contrabalanço com a subida dos serreiros, nos cantos de uma picada que seguia para o morro do macaco se podia ver um rio de sangue que coagulava entre o barro. O saldo era esse, a batalha havia sido vencida por Ermelino Gutierrez Leãos, coronéis escrevem assim a História dos vencedores. E só podem escrever com linhas de sangue, tinta rubra usada dos cadáveres onde pássaros negros pousavam, esse era o luto daquele funeral a céu aberto. Mais uma História daquele sertão esquecido por tudo que há de Brasil leste-afora. Diziam que ali era o inferno, prefiro deifinir de outra forma: Fim de mundo".
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"Era interessante observar atentamente tal paisagem. As balas ricocheteavam entre os pinheiros que exalavam um odor parente do eucalipto. A primavera parecia não florescer algo semelhante a vida, os corpos caiam entre o campo, enquanto os bois fugiam para outras pastagens. A natureza se encontrava com o homem, quem tinha pernas dele fugia, o sangue cubria o verde, a morte cubria a vida com seu manto fúnebre. Um detalhe, permaneciam alguns, retiravam-se outros. Mas o mais interessante era o seu Zébedeu que dentro da patente cagava a vontade escutando o zunido das balas na propriedade vizinha ".
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"Vinha uma carroça lá do fundo, costeava o sol e o canto da estrada recém-cascalhada. A atenção de todos se colocava naquele horizonte, naquela peça de três tábuas amontoada de moscas. Era a carroça da carne vinda de União da Vitória. Parou na frente da praça pra fazer um verdadeiro despacho da sobra. Era o que havia restado, era o que havia ficado. Ossos que pareciam meio roídos se misturavam ao mocotó, uma carne bem mal-charqueada, mal-temperada e por isso podre, roxa, rodeada de larvas. Mas praquele povo parecia não fazer diferença, pois possivelmente muitos ali nunca tinham visto carne, por isso não se importavam nem com odor nem com aparência. Foi o dia em que fui convidado por 2 de cada 3 vizinhos pra comer uma sopa de brodo na casa de cada um. Me satifiz com um sanguique de salame".
(Clevelândia-PR, relatos de um jornalista vindo da capital da província, entre os dias 14 e 30-04-1901)

domingo, 28 de agosto de 2011

A família sagrada do sertão.


Fazenda São Francisco de Sales (atual Mariópolis), às margens do Rio Veado, 1947.

Como o sopro da morte ou além dela, a espera de meu ressurgimento, aquela manhã era cortada pelo cantar do galo e pelo caboclo que acordava cedo e ia até a roça com uma enxada remexer o adubo pra brotar o milho. Uma garoinha casava com o sol nascente e fazia daquela paisagem uma verdadeira pintura numa aquarela chorosa do Sertão do Paraná.

Os porcos cachaços (machos) grunhiam no terreiro comendo abóboras e morangas, a sua esposa acendia o fogão a lenha improvisada e o seu piazinho debulhava um milho para as galinhas carijós que ciscavam em volta da casa.

O cotidiano se mostrava a única opção, a não ser quando rolava um bailão nos taquarais na comemoração do Espírito Santo, logo depois da missa. Se pudéssemos resumir a História desses caboclos no Sertão do Paraná seria necessária apenas uma palavra: silêncio.

Roceiros e safristas cuidavam a horta, sua fonte de alimentação, garantia da economia de subsistência ou desenvolvendo roças de milho. Mateiros e sertanistas trabalharam na lida com animais silvestres como porcos-do-mato, onças e tatus extraindo suas peles e usufruindo inclusive de suas carnes. Religiosos e devotos, promoviam um culto próprio em contato com a natureza, dela extraíam ervas para fazer chá e desempenhar o papel da medicina popular na região. Posseiros e imobiliários, comercializaram por um baixo preço suas terras e não receberam nenhuma documentação do governo por terem administrado essas terras.

Penso enquanto as linhas se tecem numa ruptura. Os seres silenciosos e sossegados do mato não puderam escrever sua própria versão na História, portanto, durante muito tempo ficamos com a versão dos vencedores, daqueles que vieram depois, os gringos.

Interrompido em sua travessia o caboclo, seu Nerso, foi chamado por um homem que estava sobre uma carroça vindo do norte Rio Grande, queria ali se estabelecer, comprar uma terra, montar seu rincão sobre o que as autoridades diziam estar “desabitado”. A troca foi feita na hora, a carroça foi trocado pelos 120 alqueires que o caboclo possuía, até o fim da tarde a família de seu Nerso foi até a bodega mais próxima e assinou uma papel onde estava desistindo das terras onde viveu seus 40 e poucos anos. Naquela época, o sudoeste não possuía cartórios, logo quem tinha toda autoridade na colônia era o bodegueiro, o fio do bigode valia a palavra desse homem que ficava de atrás do balcão espreitando todas as negociações.

No outro dia, o gringo Tarturino chega na bodega se “gavolando” de ter “logrado” o caboclo, ou seja, se achando porque fez um grande negócio porco enquanto ia se turbinando de uma pinga de mentruz com alho:


-Finquei mesmo, o 'caboco' teve que sair se peidando sei lá pra onde, fui mandado aqui pelas autoridades da capital, agora eles me mandaram fazer uma roça de 'mio' (milho) e criar uns porcos. Sim sim, agora os grandes de São Paulo vão depender do nosso milho, eu tô aqui e não é do nada, 'temo' que 'fincá' a patrola, derrubar esses mato de araucária e fincar 'mio' aí pra fazer dinheiro. Soquei nele uma carroça 'véia' que eu tinha, com as roda tudo entrevada, ele aceitou na hora. Tô indo buscar outra que meu mano fez pra mim em União da Vitória.


Alguns dias depois, na viagem, dito e feito, aconteceu a presepada, o caboclo se estrepou na estrada quase chegando em Villa Nova (atual Pato Branco), descendo um barranco liso, a roda tastaviou (quebrou no meio), no tranco logo derrubou seu guri pra baixo dos cavalos que se assustaram e pisotearam seu frágil corpo. A tristeza tomou conta do casal que logo teve de levar o corpo do seu primogênito de 6 anos para ser enterrado num campo santo na vila ali próxima.

O leitor atento na lida e na peleia do andamento da História logo deixa de lado um questionamento interessante. Por que os caboclos vendiam aos gringos suas terras a tão baixo preço?

O brique (troca) se justificava de forma simples, os caboclos viviam há décadas ali, mas nunca ganhavam do governo qualquer escritura, o território era considerado “desabitado”, por isso também chamado de Sertão, logo o governo ignorava a existência de qualquer povoamento indígena ou caboclo na região simplesmente por outro motivo quantitativo.

A grande população cabocla do sudoeste não produzia renda, plantava roças de milho e criava porcos, mas sem almejar lucro, sem derrubar uma grande faixa de matas, sem fazer queimadas... Logo, a ausência de cobiça nos olhos serenos do caboclo, seus pés descalços, sua mão calejada segurando o mate eram detalhes insignificantes para os políticos capitalistas que nem sequer sabiam o que era o Sertão, preferiam dizer que ele não existia. Ao momento que esses seres do mato perdiam suas terras tinham que se embrenhar em outras campinas procurando outras formas de vida.

Nem pensavam em resistir perante o sistema que os expulsava de suas terras, eram da paz, mas de onde vieram esses caras com a pele “cor de cuia” que aqui viviam?

Muitos eram fugitivos da Guerra do Contestado (1912-1916), lá seus avós, pais, já haviam perdido suas terras para uma companhia internacional ali a mando para construir uma ferrovia e desenvolver a região nordeste de Santa Catarina e foram expulsos a laço e a pau pelo exército que foi protagonista em favor do Capitalismo e contra as famílias que viviam ali sossegadamente...


Após esse parênteses, nossa História continua, o acidente ocorreu na beira de uma sanga, a mãe segurava o filho no colo, banhando seu rosto entre a água fria corrente e o calor de suas lágrimas que cobriam o local de tristeza. Do horizonte, visto ofuscadamente pelo sol, aparece um homem, barba por fazer, corpo coberto pelo hábito marrom, um capuz que cobria sua cabeça, sandálias de couro, assoviando uma música junto de um pombinha campeira que segurava no dedo indicador aquele homem saiu correndo até a mãe em prantos lhe tirando o menino do colo e o apertando contra seu peito a criança pestanejou e parecia segurar em sua mãozinha o escapulário do monge.

Logo um clarão de fogo pareceu cegar instantaneamente o casal que logo só podia enxergar tudo como um eterno leite enquanto o jovem voltava ao colo da mãe e o monge sumia no clarão do sol daquela tarde do Sertão. Segundos depois, a íris do olho da mãe se reanima e ela vê seu filho dormindo com o corpo intacto, são e salvo bocejando e se levantando, na sua palma da mão esquerda uma chaga havia aparecido. O marido improvisou duas ripas para consertar a roda da carroça, a mãe com receio logo afastou o menino dos cavalos, mas esse logo se desvencilhou dos braços protetores de sua gestora para passar a mão nos negros alazões que o haviam machucado...


A família sagrada do sertão estava na estrada outra vez.

domingo, 21 de agosto de 2011

Contos do Rio Ligeiro beirando o c* do mundo - Badanha Senior e a chacina dos Negos Buraios



1947: O rio, sua velocidade descomunal, suas enchentes contínuas e desastrosas numa terra-sem-lei, palco da convivência de gringos e caboclos, desavenças, vinganças eram comuns no dia-a-dia do lugar chamado de "c* do mundo". (inspirado em relatos históricos)

Entre os afluentes do rio Chopim estava o Rio Ligeiro, acostumado a inundar com velocidade Villa Nova (atual Pato Branco), foi assim batizado ou melhor apelidado pelo “Ligeiro”, um paraguaio que ficava na encosta do rio fazendo briques (trocas) com qualquer pelego ou dinheirudo que ali passasse, sua moeda de troca era a erva-mate, vivia na corrida pra trocar tudo pela chamada “erva do diabo” - combustível potencializante e um afrodisíaco natural do sertão.

Logo ao lado da casa e do escritório improvisado do Ligeiro havia uma raia de cavalos onde a machaiada de Villa Nova se reunia numa raia pra ver os cavalos emparelharem enquanto já rolava uma aposta e a pinga ia comendo solta. Enquanto o martelinho (copo vazio de pinga) batia o balcão improvisado, os homens pegavam o chinaredo (mulherada) pra dançar. Mas ali não era apenas ambiente de confraternização, entre apostas rolando, copos vazios e mulheres faltando o tiro comia solto também. Lembro de uma prosa que rolava entre Mané Figurinha que se dizia o maior dono de terras da costa do Chopim, o “home véio” morava no Morro do Sovaco, esse morro que pra descer todo mundo acabava fedendo sovaco de cansado, então imagine o estado do peão.

Junto dele estava Badanha Senior, botas brancas, ficava inconfundível ainda mais fumando cachimbo – seu apelido mais tarde se tornou “Sócio da Souza Cruz”. Figura era sossegado, só pensava em trabalhar, só que era mentiroso e exagerado. Badanha era “bão de desaforo”, tanto que enquanto pagava um vermute com gelo pra duas chinas teve que mexer com seis caboclos do Buraio – lugar onde se produzia carvão no antigo Bairro Godoy, atual Vila Verde -, estavam no fudunço do lado da cancha de bocha tomando um gasosão:

-Oh pé sujo! Vá 'trabaiá' mais 27 ano pra comprar um bota dessa – bradou Badanha Senior.

-Home, pareee loco véio, os piá tão de boa ali – exclamou Figura.


Entre todos, praticamente azuis de tão sujos de carvão, cochichou o menor de todos e mais coceira, Fidelzito, o revolucionário, o crítico, o “inticão”, na chamada “quebrada” onde morava, anos depois representou a “banca” e venceu o inter-bairros de coceira, só coçava mesmo:

-Vamo bochá, vamo bochá?


O caboclo Viriato logo ironizou, retrucando com voz alta:

-'Vamo' se fincar mais pro lado que tá ali duas almofada com perfume de sovaco escorando as puta no barranco – só que falou só pra acender o estopim, ia fazendo exatamente o contrário, chegando mais perto dos dois com sua trupe esfumaçada.


Entre eles estava Nego Tiguera, só acompanhando o bando, um caboclo assustado que procedente do Contestado. Tiguera não gostava de briga, nenhum pouco. Além dele, os cinco queriam ferver o ki-suco, erguer o 'reio' naqueles gringos chamados de “boca aberta”.


-Oh 'rapaiz', vai pra lá que 'nóis tamo' proseando aqui home véio, tá sujando meus garrão com esses pé – Bagé falou pra Nego Wardo, o maior de todos, um caboclo virado em cicatrizes e em marcas de gado pelo corpo, caolho e com a garrafa vazia da gasosa entre os dedos suada e prontinha pra ser decepada nos 'corno' do gringo inticão.

-Comé que é, gringo cara de bagre? - Questionou Nego Juca que foi logo peitando Badanha enquanto era interrompido por Figurinha:

-Bá home, tome um gole do meu gole e fique com a minha 'muié'.

-Sai fora com essa fonte de 'gonorréiagem', não achei meu pinto no chiqueiro pra comer putedo! - exclamou Nego Lázaro.


Enquanto isso, Fidelzito apareceu com uma faca enferrujada e sem cabo, roubada de sua mãe que a usava para sangrar os porcos-do-mato que caçava à unha nos matos do atual Vila Verde. O pequeno coceira foi logo fincando no pulmãozão de Badanha que logo caiu sangrando. Foi aí que o tiro correu solto a partir da cancha de bocha enquanto gringos racistas xingavam os buraios de "negada do diabo".

Nego Tiguera sobreviveu pois se fincou dentro de um buraco de tatu pra fugir do degladeio, a chacina dos buraios não passaria por inquérito porque a pequena vila não possuía polícia. Apareceu o pirata do Chopim, Polaco Sukita, cabeludo e de óculos escuros, jogando os corpos dentro de um barquinho caíco proseava com o chefão Badanha e dizendo-lhe um conselho:

-A lei tá boa, não vai dar cadeia!